sábado, 31 de dezembro de 2011

A poesia em 2011

Por ordem alfabética dos títulos, 15 livros de poesia publicados este ano que li e que destaco:

- 2010-2011, Ana Paula Inácio, Averno;
- A mão na água que corre, José Manuel de Vasconcelos, Assírio & Alvim;
- As raízes diferentes, Fernando Guimarães, Relógio D'Água;
- Cobra d' Água, A. M. Pires Cabral, Cotovia;
- Como se desenha uma casa, Manuel António Pina, Assírio & Alvim;
- Cova Funda, Nunes da Rocha, & etc;
- Em caso de tempestade este jardim será encerrado, Inês Dias, Tea for One;
- Lendas da Índia, Luís Filipe Castro Mendes, D. Quixote;
- Motet pour les trépassés, Manuel de Freitas, Língua Morta;
- Nervo, Diogo Vaz Pinto, Averno;
- O som do sôpro, António Barahona, Poesia Incompleta;
- Raspar o fundo da gaveta e enfunar uma gávea, António Barahona, Averno;
- Serém, 24 de Março, José Miguel Silva, Averno;
Um arraial português, Rui Lage, Ulisseia;
- Vim porque me pagavam, Golgona Anghel, Mariposa Azual.

Vítor Nogueira e Bénédicte Houart publicaram também bons livros, Modo fácil de copiar uma cidade, & etc, e Vida: variações II, Cotovia, respetivamente. De assinalar ainda, em edição dos autores, A dança das feridas, de Henrique Fialho, Rumor, de José Carlos Barros e Teorias, de manuel a. domingos. Não foram lidos (por enquanto) os Negócios em Ítaca, de Bernardo Pinto de Almeida, Relógio D'Água; Tentativa e erro, de José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim; Portas do mar, de Manuel de Freitas, edição do autor; O comportamento das paisagens, de Pedro Tiago e Breve passagem pelo fogo, de Frederico Pedreira, os dois últimos editados pela Artefacto. A Assírio & Alvim editou duas antologias imperdíveis, uma de Manuel António Pina (organizada pelo próprio) e outra de Ruy Belo, poemas escolhidos por Manuel Gusmão. Pedro Mexia também se autoantologiou em Menos por menos (edição D. Quixote); João Luís Barreto Guimarães reuniu os poemas (edição Quetzal). As revistas Telhados de Vidro e Criatura  continuam a dar cartas e têm trunfos muito fortes. A Piolho é irregular (o número 6 foi o melhor, até agora). A Golpe d' Asa não começou mal, talvez possa melhorar. Que se foda a crise. Feliz Ano Novo.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

"a pintura"

Em parte, talvez seja assim. Mas penso que só em parte. Veja-se, por exemplo, um livro do ano que agora finda que, prática e imerecidamente, passou despercebido, A mão na água que corre, de José Manuel de Vasconcelos (Assírio & Alvim). Pintura? Rubens e Van Gogh, sim, mas também Christopher Pratt ou Lourdes Castro. Ou Gerardo Rueda:

NUMA EXPOSIÇÃO DE GERARDO RUEDA

Olhavas para um quadro de Rueda
com um ar curioso mas displicente
procurando acolher aquelas três ou quatro
massas de cor na desorganização do teu olhar
que bem reflectia a tua vida
e eu contemplava-te apenas a pensar em sexo
e colocava-te mentalmente nas posições
em que gostaria de te possuir nessa noite
quando na efémera paisagem do quarto de hotel
organizássemos a relação do desejo
com os objectos que o habitavam (cama, cadeira, espelhos,
e até o armário)
No fundo, no teu corpo
inscrevia-se a indecifrável vertigem
que une a arte e a vida

(p. 60)

Também aqui se vê, curiosamente, à maneira de Hopper, uma "efémera paisagem d[e] quarto de hotel"; mas não se vislumbra nenhuma melancolia, antes desejo e vertigem. A propósito de vertigem, ocorre-me ainda um outro exemplo (igualmente de um livro deste ano): 2010-2011, de Ana Paula Inácio. Também aqui, em vez de Hopper, as latas de Tomato Soap ou as embalagens de detergente Brillo de Warhol; ou Francis Bacon. Sim, apesar de tudo, a coisa é muito mais divertida e interessante.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A poesia em 2011: Manuel da Silva Ramos

Equipado para morrer



deixei a minha casa
equipado para morrer
mas não morri

saí do café trivial
equipado para morrer
mas não morri

pus-me à espera do eléctrico
equipado para morrer
mas não morri

entrei no meu emprego
equipado para morrer
mas não morri

saí do meu emprego
equipado para morrer
mas não morri

apanhei o autocarro
equipado para morrer
mas não morri

entrei no bar
equipado para morrer
mas não morri

regressei a casa
equipado para morrer
mas não morri

deitei-me na minha cama
equipado para morrer
e não morri



(Golpe d'asa, CLEPUL e GOLPE Edições, Lisboa, novembro, 2011, p. 21).

domingo, 4 de dezembro de 2011

Bora Altas













(Bora Altas como Yusuf, em Mel, filme de Semih Kaplanoglu (Turquia, 2010)

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A poesia em 2011: Miguel Martins

24 - Dos & dont's



Não quero aumentar o tamanho do meu pénis.
Não quero habilitar-me a uma fantástica bimby.
Não quero passar um fim-de-semana num magnífico hotel da parvónia.
Quero que metam a internet, de uma pnta à outra, pelo cu
e, já agora, a rádio, a televisão e os jornais (rotativas incluídas).
Quero um mordomo, isso quero, de libré,
para me fazer mayonnaise e ler a Bíblia;
um harém, de faces trigueiras e rosadas,
que saiba amar e cultivar legumes;
e quero, sobretudo, o som do mar
agora e na hora da minha morte.



(Lérias, Averno, Lisboa, 2011, p. 37).

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

A poesia em 2011: Nunes da Rocha

Nódoa



Tenho uma nódoa na camisa,
Meu coração não está de maré!
Pudesse tirar um verso da matriz,
Como do nariz, um burrié!



(Cova funda, &etc, Lisboa, 2011, p. 21).

domingo, 6 de novembro de 2011

A poesia em 2011: António Barahona

Falar de coisas práticas



Falar de coisas práticas, talvez
tratar dos meus negócios em poemas;
atender, por extenso, às circunstâncias
de passar fome há mais de meio mês.

A história do cavalo do inglês
faz-me rir a bandeiras despregadas,
digo sílabas só embandeiradas
e cômo os pregos um de cada vez.

Mudar a minha ementa, eu aspiro,
porque já tenho o estômago de ferro
e meu trabalho é tornar-me em oiro:
a luta dos metais, maior tesoiro,
religa a alquimia em que me encerro
no sonho dum bom bife e dum cigarro.



(Raspar o fundo da gaveta e enfunar uma gávea, Averno, Lisboa, 2011, p. 100).

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O amor é cego e dura até hoje




Passaram vinte anos. Parece que foi ontem. Recomecemos mais uma vez. E outra. E outra.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Carlos Queirós

Anti-soneto


Ao Mário Saa



O nosso drama de portugueses,
O nosso maior drama entre os maiores
Dos dramas portugueses,
É este apego hereditário à Forma:
Ao modo de dizer, aos pontinhos nos ii,
Às vírgulas certas, às quadras perfeitas,
À estilística, à estética, à bombástica,
À chave de ouro do soneto vazio
- Que põe molezas de escravatura
Por dentro do que pensamos
Do que sentimos
Do que escrevemos
Do que fazemos
Do que mentimos.



(Poemas portugueses. Antologia da poesia portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI, selecção, organização, introdução e notas de Jorge Reis-Sá e Rui Lage, prefácio de Vasco da Graça Moura, Porto Editora, Porto, 2009, p. 1291).

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Go get some rosemary...



(19 de Setembro de 1981, Central Park, Nova Iorque...)


(Are you going to Scarborough Fair?
Parsley, sage, rosemary & thyme
Remember me to one who lives there
She once was a true love of mine
Tell her to make me a cambric shirt
(On the side of a hill in the deep forest green)
Parsely, sage, rosemary & thyme
(Tracing a sparrow on snow-crested ground)
Without no seams nor needlework
(Blankets and bedclothes a child of the mountains)
Then she'll be a true love of mine
(Sleeps unaware of the clarion call)
Tell her to find me an acre of land
(On the side of a hill, a sprinkling of leaves)
Parsely, sage, rosemary, & thyme
(Washed is the ground with so many tears)
Between the salt water and the sea strand
(A soldier cleans and polishes a gun)
Then she'll be a true love of mine
Tell her to reap it in a sickle of leather
(War bellows, blazing in scarlet battalions)
Parsely, sage, rosemary & thyme
(Generals order their soldiers to kill)
And to gather it all in a bunch of heather
(And to fight for a cause they've long ago forgotten)
Then she'll be a true love of mine
Are you going to Scarborough Fair?
Parsley, sage, rosemary & thyme
Remember me to one who lives there
She once was a true love of mine.)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

A poesia em 2011: José Bento

12

A Joaquim Manuel Magalhães


Não há ninguém para ouvir, se acaso cantam
a chuva, pássaros, ausências vibrantes
na cozinha de outrora,
- no telhado onde a noite repousa de seus astros,
nas ramagens transidas mais que por raízes
sôfregas dos passos enterrados:
pelo vazio talhado por quantos se apagaram
sem poder acenar-lhes sequer o olhar restante.

Do fumo, nem névoa nem olor,
(aquele extenso olor de lembranças e pinho)
só a sua escrita viva nas lajes, nas madeiras:
aqui, diz a caruma a espertar o café;
ali, que ateiam lenha mãos tão anafosas
que sob a terra inda me acalentam;
e leio mais além as ceias, os serões
de sabores e conversas fluindo sonolentos.

Há a porta fechada por uma chave perra
sem haver quem recorde onde ela está guardada;
e a lareira e a mesa, já não pedra e castanho:
rostos sob a poeira sem lábios para a voz;
e o cântaro, a soleira, as janelas, o cesto,
sem água nem pegadas, sem cortinas e pão.

Longínquo, desconheço o que aí sobrevive:
houve palavras, gestos, achas nem cinza hoje,
calor e não apenas de sol e labaredas,
em redor soltou-se a aura de pólen e trinados;
isto me chama e abriga como as paredes trémulas,
mais de vestigíos plenos que de cal e adobes,
onde busco quem fui sem me importar se o encontro,
entre rastos de sombras e de asas já sem voo.



(Sítios, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011, pp. 24-25).

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A poesia em 2011: Golgona Anghel

Portugal, dia um de Maio de dois mil e oito.
As nossas janelas têm vista para o Mediterrâneo.
Os nossos turitas são ingleses. As nossas cozinheiras angolanas.
As nossas empregadas brasileiras.
Os nossos pedreiros ucranianos.
Os nossos comerciantes chineses e indianos.
As nossas amantes baratas.
As nossas putas disponíveis - agora, se faz favor.
Os nossos sonhos transatlânticos.
Os nossos hábitos light, soft, ecológicos, se possível.
Os nossos medos hoje são negros.
Os nossos dias contados.
As cegonhas têm a cor do querosene
e o sentido apurado dos Airbus 380.
Sobeja alguma caixa de Pandora,
com alguns dentes de ouro guardados lá dentro.
No Outono, iremos apanhá-los quais frutos maduros
caídos no chão das câmaras de gás da nossa consciência.

Até lá, vamos diariamente povoando
o nosso jardim zoológico com animais virtuais.
O ambiente está bom. O tempo provável.
As modelos dos clipes publicitários da Colgate,
os bushes e as torres gémeas, o sarkozy e as carla bruni
etc., estão todos a sonhar os nossos sonhos
desde uma margem da história
que não vinha nos manuais,
desde o outro lado do ecrã dos nossos plasmas philips,
desde o real socialismo
que falhou, falhou, falhou tantas vezes
melhor no sonho da sua realidade
desde uma união aduaneira cada vez mais integrada,
do banco europeu onde o próprio presidente nos sonha
na fossa comum da política agrícola (PAC)
desde a altura do seu bigode,
desde a fofura da sua almofada,
com fantasisas em seda bordadas nas margens
e uma palavra com letras pequeninas,
preto sobre branco,
a-r-m-a-n-i.



(Vim porque me pagavam, Mariposa Azual, Lisboa, pp. 70-71).

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

António Gedeão

Anti-Anne Frank



Esta criança esquálida,
de riso obsceno e olhares alucinados,
nunca apertou nas mãos a fria face pálida,
nunca sentiu, na escada, as botas dos soldados,
nunca enxugou as lágrimas que aniquilam e esgotam,
nunca empalideceu com o metralhar de um tanque,
nem rastejou num sótão,
nem se chama Anne Frank.

Nunca escreveu um díário nem nunca foi à escola,
nem despertou o amor de editores piedosos.
Nunca estendeu as mãos em transes dolorosos
a não ser nos primores da técnica da esmola.

Batem-lhe, pisam-na, insultam-na, sem que ninguém se importe.
E ela, raivosa e pálida,
morde, estrebucha, cospe, odeia atá à morte.

Pobre criança esquálida!
Até no sofrimento é preciso ter sorte.



(Reproduzido em Poemas Portugueses - Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI; selecção, organização, introdução e notas de Jorge Reis-Sá e Rui Lage; prefácio de Vasco Graça Moura, Porto Editora, Porto, 2009, pp. 1288/1289).

domingo, 24 de julho de 2011

A poesia em 2011: José Alberto Oliveira

A província

1. Chaves



Qual a virtude
das cidades pequenas?
A bondade das sestas?
A excelência de almoços
nos fins de semana?
A melancolia do crepúsculo
no traço das serras?
Se outros preferem
mediocridade mais anónima
haverá quem pense
que algum sítio
é bom para viver.
Ou nenhum.
O que é o mesmo.


2. Chá (e um epigrama de Palladas)


As tias do Castelejo
não permitiam que as visitas
saíssem sem beber
xícaras de chá forte e açucarado
- eu tinha por esse chá a devoção
e o entusiasmo de um prosélito.
Agora, que lavam os pires
nas ribeiras do paraíso
e eu substituí a tal infusão
benévola por sublimados bárbaros,
estarei também já morto
e a vida é um sonho,
ou estarei vivo
e foi a vida que morreu?



(Telhados de Vidro, nº 15, Averno, Lisboa, pp. 29-30).

quarta-feira, 20 de julho de 2011

A poesia em 2011:Vítor Nogueira

Osso queimado



Osso queimado e moído com água
é sombra para rostos delicados. A figura corre,
leva força e sentimentos nas pernas, ultrapassa
o velho do umbigo. Não é só uma actividade
vigorosa, contrária ao efeito da manhã,
é o jogging, senhoras e senhores, com toda
a responsabilidade que isso implica: evitar
becos sem saída, conservar a energia para
o sprint final. Entretanto, olhos pendurados
em todas as árvores, a figura desliza admirável,
chips subcutâneos, coisas assim, sensacionais.
Mas a verdade é que as pessoas vêm e vão,
seguem até onde ou porquê não saibamos.
É a única maneira de escapar a tudo isto.



(Telhados de Vidro, nº 15, Averno, Lisboa, 2011, p.62)

terça-feira, 19 de julho de 2011

A poesia em 2011: José Carlos Barros

chove mais uma vez



chove mais uma vez
oiço lá fora o barulho da água a correr nas caleiras
a espalhar-se nos passeios de cimento
estou na sala da casa da
minha avó
passo a ponta dos dedos pela gravura
japonesa da tampa da
caixa de costura
há um único livro
a velhice do padre eterno
os versos do meu pai em folhas quase
transparentes

chove mais uma vez
a infância é um pássaro aceso nos ramos das árvores
um território de meteoros incendiados
numa bacia de plástico
com água
da chuva



(Rumor, edição do autor, 2011, p. 20).

segunda-feira, 18 de julho de 2011

A poesia em 2011: Henrique Manuel Bento Fialho

Bella Akhamadulina a Yevgeny Yevtushenko, muito antes de ter conhecido Boris Messerer



A esse pássaro que canta nas árvores
apetece-me atirar pedras,
a ver se de uma vez por todas
ele se decide por voar mais do que canta.

A esse pássaro de gaiola
apetece-me envenenar a alpista,
a ver se lhe alivio as dores
de tanto esbarrar contra as grades.

Só à águia embalsamada na taberna
da Francisca nada me apetece fazer.
Fico a olhá-la como a um espelho.
E nada me apetece fazer.



(A dança das feridas, Colecção Insónia, 2011, p. 21)

sábado, 16 de julho de 2011

Arcade Fire: entre a poeira e a lua cheia

Começou assim:














Prosseguiu assim (mas com toneladas de poeira cinzenta à mistura):





E terminou assim: "Fucking hell! Thank you. It´s shows like this one that reminds you why you dit it in the first place..." (Win Butler)


quinta-feira, 14 de julho de 2011

Beirut



Hoje não me importava nada de estar no meio da poeirada do Meco para ouvir isto... E isto:


quarta-feira, 13 de julho de 2011

terça-feira, 12 de julho de 2011

A poesia em 2011: Herberto Helder

os cães gerais ladram à luas...



os cães gerais ladram às luas pelos desertos fora,
mas a gota de água treme e brilha,
não uses as unhas senão nas linhas mais puras,
e a grande Constelação do Cão galga através da noite do mundo cheia de ar
[e de areia
e de fogo,
e não interrompe ministério nenhum nem nenhum elemento,
e tu guarda para a escrita a estrita gota de água imarcescível
contra a turva sede da matilha,
com a tua linha limpa cruzas cactos, escorpiões, árduos buracos negros:
queres apenas
aquela gota viva entre as unhas,
enquanto em torno sob as luas os cães cheiram os cus uns aos outros
à procura do ouro



(Público, 14 de Maio de 2011; lido aqui)

domingo, 10 de julho de 2011

A poesia em 2011: Rui Lage

As colchas ricas formando troféu



Intermináveis nos terraços
de onde se vê o céu mobilado,
ou debruçadas em varandas penitentes,
pintam as unhas, alheias à rua
que entre nimbos e pedra levada
do adro aos metais do coreto,
com vagar de alimária
tocada de sombras hirsutas,
vai passando a trote de andor
à frente o compasso
atrás a fanfarra.

Fechadas em casas de banho
dedilham telemóveis
com destreza de pianistas.

Em vez de flores no cabelo,
auriculares.



(Um arraial português, Ulisseia, Lisboa, 2011, p. 26).

sexta-feira, 8 de julho de 2011

A poesia em 2011: Jorge Reis-Sá

"Terei a coragem de Pavese..."



Terei a coragem de Pavese para deixar
tudo preparado e partir? Um diário
com todas as indicações de que o fim
se aproxima e a passos muito largos,
a reunião de toda a poesia num original
devidamente encapado e pronto a ser
editado na Einaudi. Trabalhar cansa.

Aceito. Mas cansa mais não fazer nada.



(Mulher moderna, Ulisseia, Lisboa, 2011, p. 33)

quarta-feira, 6 de julho de 2011

A poesia em 2011: Rosa Alice Branco

O cão que me tinha



Eu tive um cão ou era ele
que me tinha e me deixava à solta
guiada sem saber que ia.
Tomava as minhas feridas,
a tristeza que eu pudesse ter
e sofria dela como eu nem sofria.
Trocava de mal trocando-lhe as voltas.
Punha a coleira ao pescoço
e levava-me a passear
como se eu fosse o dono.
E à noite dormia no chão
ou então fingia. Eu acordava
com um servo aos pés da cama,
armava-me em amo
e era ele que me tinha.
Exímio no silêncio
e no uso das armas
com que me defendia
de todos e também de mim:
a linha veloz do pêlo luzidio,
o frémito da língua,
o focinho em arco para a escuta.
Era um cão que me tinha
e uma tarde de verão
atirei-lhe um osso gostoso
anter de o deixar no canil.



(Gado do Senhor, &etc, Lisboa, 2011, p. 13).

terça-feira, 5 de julho de 2011

A poesia em 2011: Ana Paula Inácio

Acrobacias



sentados em Trafalgar Square
no intervalo de amigos
com o tempo entre as mãos
treinávamos o inglês
num inquérito de revista
com Francis Bacon na capa
que perguntava:
qual dos membros
- superiores ou inferiores -
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
torna-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ia
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
Assim juntando as nossas
perdas
eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.



(2010-2011, Averno, Lisboa, 2011, p.34; inicialmente publicado em Telhados de Vidro, Averno, nº 3, Novembro, 2004, Lisboa, p. 19).

segunda-feira, 4 de julho de 2011

A poesia em 2011: Diogo Vaz Pinto

Sorrir no inferno



Chamem-lhes domingos ou dias de doce fadiga.
Não é mais fácil esquecer a vida, mas é o que temos
de mais parecido com o descanso que a morte promete.
Visto-me tão mal quanto possa e vou
subindo a rua mais sinuosa, não há pressa. Observo
gatos a vadiarem por entre curtas sensações de paz,
passando à porta dos tugúrios onde me deixo
sentado a um canto enovelando uma série de pensamentos
- como discos riscados - a tocarem para estas espessas
horas de falência, bebidas e, a intervalos, mijadas
no urinol. Tenho o suficiente se me apetecer cair
sem peso, voar pelo chão, sorrir no inferno.

Mantenho um discurso de circunstância,
invento personagens fictícias que me ouvem atentamente
e vou quebrando o sigilo, amadurecendo teorias.
Deixo-me entusiasmar e crescer
planeando o contra-ataque, a revolução...
Mas assim que atinjo o ponto mais alto, os próprios
companheiros que me inventei vão virando os bolsos,
sacodem de leve as calças e levantando-se passam por mim,
deixam cair uma mão fria no meu ombro
e despedem-se abanando a cabeça.

Vejo-me de novo a sós, enfrentando um copo vazio
e uma folha de papel amassada. Uma vez mais
sinto inveja dos doidos a sério. Parece que eu só sonho
e acordo. E tudo o que sei é anotar as cinzas.



(Nervo, Averno, Lisboa, 2011, p. 117)

domingo, 3 de julho de 2011

A poesia em 2011: António Barahona

Perpétuo sem descanso



Contigo nos meus braços
sou capaz de atravessar paredes,
tornar-me invisível,
fazer milagres.



(O som do sôpro, Poesia Incompleta, Lisboa, 2011, p. 84).

sábado, 2 de julho de 2011

A poesia em 2011: Manuel de Freitas

Os poetas

para o Ricardo Álvaro



Fevereiro de 2011: fiquei a saber
por uma revista de merda, que
"os poetas não são tipos normais"
(vinha na capa da tal revista).

É um bocadinho discutível;
os poetas fodem, cagam,
gostam ou não gostam
de francesinhas e marujos.
Têm, como toda a gente, de vigiar
o colesterol e de pagar impostos.

Porém, e antes mesmo de haver verbo,
há poetas e puetas. Há-os
gestores, contentinhos, polivalentes
- assim como os há revoltados,
insubmissos, crus e sem saída.

Uns acreditam nas palavras,
outros calam-se. Uns ministros,
outros deputados, mas capazes
(quase todos) de prefaciar mendigos
que olharam de frente o sol.

Os poetas morrem - e isso,
à falta de melhor, torna-os bastante normais.



(Público, 07.05.2011. Lido aqui).

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A poesia em 2011: José Manuel de Vasconcelos

Salão de chá

(comentário a um poema de Ezra Pound)



Ainda havemos de ter saudades da rapariga
a caminhar para a meia idade
quando já não nos conseguirmos levantar
sem o uivo dos bosques queimados do nosso prazer
É certo que era mais ardente quando subia
as escadas e nos trazia madalenas
mais plebeia a graça das suas pernas de canela,
mas por desgraça o tempo é um combustível
uma tortura de cruas catapultas
que a todos aturdidamente atinge, e chegará o dia
em que silencioso e apenas recordado o riso
da velha rapariga nos parecerá o brilho do sol



(A mão na água que corre, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011, p. 15).

quinta-feira, 30 de junho de 2011

A poesia em 2011: João Almeida

Sina



tenho poucas palavras
duas para uma caixa de fósforos
uma para lavar as mãos
nenhuma para este poema



(Um milagre no caminho, Averno, Lisboa, 2011, p.17).

quarta-feira, 29 de junho de 2011

A poesia em 2011: Luís Filipe Castro Mendes

Ainda a poesia



A poesia não é feita por um nem por todos,
nem esteve nunca na rua.
A poesia está na aspereza das coisas contra nós,
tão mais nítidas ao nosso olhar isento
quanto mais doem no coração silencioso.



(Lendas da Índia, Q. Quixote, Lisboa, 2011, p.21).