domingo, 24 de julho de 2011

A poesia em 2011: José Alberto Oliveira

A província

1. Chaves



Qual a virtude
das cidades pequenas?
A bondade das sestas?
A excelência de almoços
nos fins de semana?
A melancolia do crepúsculo
no traço das serras?
Se outros preferem
mediocridade mais anónima
haverá quem pense
que algum sítio
é bom para viver.
Ou nenhum.
O que é o mesmo.


2. Chá (e um epigrama de Palladas)


As tias do Castelejo
não permitiam que as visitas
saíssem sem beber
xícaras de chá forte e açucarado
- eu tinha por esse chá a devoção
e o entusiasmo de um prosélito.
Agora, que lavam os pires
nas ribeiras do paraíso
e eu substituí a tal infusão
benévola por sublimados bárbaros,
estarei também já morto
e a vida é um sonho,
ou estarei vivo
e foi a vida que morreu?



(Telhados de Vidro, nº 15, Averno, Lisboa, pp. 29-30).

quarta-feira, 20 de julho de 2011

A poesia em 2011:Vítor Nogueira

Osso queimado



Osso queimado e moído com água
é sombra para rostos delicados. A figura corre,
leva força e sentimentos nas pernas, ultrapassa
o velho do umbigo. Não é só uma actividade
vigorosa, contrária ao efeito da manhã,
é o jogging, senhoras e senhores, com toda
a responsabilidade que isso implica: evitar
becos sem saída, conservar a energia para
o sprint final. Entretanto, olhos pendurados
em todas as árvores, a figura desliza admirável,
chips subcutâneos, coisas assim, sensacionais.
Mas a verdade é que as pessoas vêm e vão,
seguem até onde ou porquê não saibamos.
É a única maneira de escapar a tudo isto.



(Telhados de Vidro, nº 15, Averno, Lisboa, 2011, p.62)

terça-feira, 19 de julho de 2011

A poesia em 2011: José Carlos Barros

chove mais uma vez



chove mais uma vez
oiço lá fora o barulho da água a correr nas caleiras
a espalhar-se nos passeios de cimento
estou na sala da casa da
minha avó
passo a ponta dos dedos pela gravura
japonesa da tampa da
caixa de costura
há um único livro
a velhice do padre eterno
os versos do meu pai em folhas quase
transparentes

chove mais uma vez
a infância é um pássaro aceso nos ramos das árvores
um território de meteoros incendiados
numa bacia de plástico
com água
da chuva



(Rumor, edição do autor, 2011, p. 20).

segunda-feira, 18 de julho de 2011

A poesia em 2011: Henrique Manuel Bento Fialho

Bella Akhamadulina a Yevgeny Yevtushenko, muito antes de ter conhecido Boris Messerer



A esse pássaro que canta nas árvores
apetece-me atirar pedras,
a ver se de uma vez por todas
ele se decide por voar mais do que canta.

A esse pássaro de gaiola
apetece-me envenenar a alpista,
a ver se lhe alivio as dores
de tanto esbarrar contra as grades.

Só à águia embalsamada na taberna
da Francisca nada me apetece fazer.
Fico a olhá-la como a um espelho.
E nada me apetece fazer.



(A dança das feridas, Colecção Insónia, 2011, p. 21)

sábado, 16 de julho de 2011

Arcade Fire: entre a poeira e a lua cheia

Começou assim:














Prosseguiu assim (mas com toneladas de poeira cinzenta à mistura):





E terminou assim: "Fucking hell! Thank you. It´s shows like this one that reminds you why you dit it in the first place..." (Win Butler)


quinta-feira, 14 de julho de 2011

Beirut



Hoje não me importava nada de estar no meio da poeirada do Meco para ouvir isto... E isto:


quarta-feira, 13 de julho de 2011

terça-feira, 12 de julho de 2011

A poesia em 2011: Herberto Helder

os cães gerais ladram à luas...



os cães gerais ladram às luas pelos desertos fora,
mas a gota de água treme e brilha,
não uses as unhas senão nas linhas mais puras,
e a grande Constelação do Cão galga através da noite do mundo cheia de ar
[e de areia
e de fogo,
e não interrompe ministério nenhum nem nenhum elemento,
e tu guarda para a escrita a estrita gota de água imarcescível
contra a turva sede da matilha,
com a tua linha limpa cruzas cactos, escorpiões, árduos buracos negros:
queres apenas
aquela gota viva entre as unhas,
enquanto em torno sob as luas os cães cheiram os cus uns aos outros
à procura do ouro



(Público, 14 de Maio de 2011; lido aqui)

domingo, 10 de julho de 2011

A poesia em 2011: Rui Lage

As colchas ricas formando troféu



Intermináveis nos terraços
de onde se vê o céu mobilado,
ou debruçadas em varandas penitentes,
pintam as unhas, alheias à rua
que entre nimbos e pedra levada
do adro aos metais do coreto,
com vagar de alimária
tocada de sombras hirsutas,
vai passando a trote de andor
à frente o compasso
atrás a fanfarra.

Fechadas em casas de banho
dedilham telemóveis
com destreza de pianistas.

Em vez de flores no cabelo,
auriculares.



(Um arraial português, Ulisseia, Lisboa, 2011, p. 26).

sexta-feira, 8 de julho de 2011

A poesia em 2011: Jorge Reis-Sá

"Terei a coragem de Pavese..."



Terei a coragem de Pavese para deixar
tudo preparado e partir? Um diário
com todas as indicações de que o fim
se aproxima e a passos muito largos,
a reunião de toda a poesia num original
devidamente encapado e pronto a ser
editado na Einaudi. Trabalhar cansa.

Aceito. Mas cansa mais não fazer nada.



(Mulher moderna, Ulisseia, Lisboa, 2011, p. 33)

quarta-feira, 6 de julho de 2011

A poesia em 2011: Rosa Alice Branco

O cão que me tinha



Eu tive um cão ou era ele
que me tinha e me deixava à solta
guiada sem saber que ia.
Tomava as minhas feridas,
a tristeza que eu pudesse ter
e sofria dela como eu nem sofria.
Trocava de mal trocando-lhe as voltas.
Punha a coleira ao pescoço
e levava-me a passear
como se eu fosse o dono.
E à noite dormia no chão
ou então fingia. Eu acordava
com um servo aos pés da cama,
armava-me em amo
e era ele que me tinha.
Exímio no silêncio
e no uso das armas
com que me defendia
de todos e também de mim:
a linha veloz do pêlo luzidio,
o frémito da língua,
o focinho em arco para a escuta.
Era um cão que me tinha
e uma tarde de verão
atirei-lhe um osso gostoso
anter de o deixar no canil.



(Gado do Senhor, &etc, Lisboa, 2011, p. 13).

terça-feira, 5 de julho de 2011

A poesia em 2011: Ana Paula Inácio

Acrobacias



sentados em Trafalgar Square
no intervalo de amigos
com o tempo entre as mãos
treinávamos o inglês
num inquérito de revista
com Francis Bacon na capa
que perguntava:
qual dos membros
- superiores ou inferiores -
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
torna-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ia
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
Assim juntando as nossas
perdas
eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.



(2010-2011, Averno, Lisboa, 2011, p.34; inicialmente publicado em Telhados de Vidro, Averno, nº 3, Novembro, 2004, Lisboa, p. 19).

segunda-feira, 4 de julho de 2011

A poesia em 2011: Diogo Vaz Pinto

Sorrir no inferno



Chamem-lhes domingos ou dias de doce fadiga.
Não é mais fácil esquecer a vida, mas é o que temos
de mais parecido com o descanso que a morte promete.
Visto-me tão mal quanto possa e vou
subindo a rua mais sinuosa, não há pressa. Observo
gatos a vadiarem por entre curtas sensações de paz,
passando à porta dos tugúrios onde me deixo
sentado a um canto enovelando uma série de pensamentos
- como discos riscados - a tocarem para estas espessas
horas de falência, bebidas e, a intervalos, mijadas
no urinol. Tenho o suficiente se me apetecer cair
sem peso, voar pelo chão, sorrir no inferno.

Mantenho um discurso de circunstância,
invento personagens fictícias que me ouvem atentamente
e vou quebrando o sigilo, amadurecendo teorias.
Deixo-me entusiasmar e crescer
planeando o contra-ataque, a revolução...
Mas assim que atinjo o ponto mais alto, os próprios
companheiros que me inventei vão virando os bolsos,
sacodem de leve as calças e levantando-se passam por mim,
deixam cair uma mão fria no meu ombro
e despedem-se abanando a cabeça.

Vejo-me de novo a sós, enfrentando um copo vazio
e uma folha de papel amassada. Uma vez mais
sinto inveja dos doidos a sério. Parece que eu só sonho
e acordo. E tudo o que sei é anotar as cinzas.



(Nervo, Averno, Lisboa, 2011, p. 117)

domingo, 3 de julho de 2011

A poesia em 2011: António Barahona

Perpétuo sem descanso



Contigo nos meus braços
sou capaz de atravessar paredes,
tornar-me invisível,
fazer milagres.



(O som do sôpro, Poesia Incompleta, Lisboa, 2011, p. 84).

sábado, 2 de julho de 2011

A poesia em 2011: Manuel de Freitas

Os poetas

para o Ricardo Álvaro



Fevereiro de 2011: fiquei a saber
por uma revista de merda, que
"os poetas não são tipos normais"
(vinha na capa da tal revista).

É um bocadinho discutível;
os poetas fodem, cagam,
gostam ou não gostam
de francesinhas e marujos.
Têm, como toda a gente, de vigiar
o colesterol e de pagar impostos.

Porém, e antes mesmo de haver verbo,
há poetas e puetas. Há-os
gestores, contentinhos, polivalentes
- assim como os há revoltados,
insubmissos, crus e sem saída.

Uns acreditam nas palavras,
outros calam-se. Uns ministros,
outros deputados, mas capazes
(quase todos) de prefaciar mendigos
que olharam de frente o sol.

Os poetas morrem - e isso,
à falta de melhor, torna-os bastante normais.



(Público, 07.05.2011. Lido aqui).

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A poesia em 2011: José Manuel de Vasconcelos

Salão de chá

(comentário a um poema de Ezra Pound)



Ainda havemos de ter saudades da rapariga
a caminhar para a meia idade
quando já não nos conseguirmos levantar
sem o uivo dos bosques queimados do nosso prazer
É certo que era mais ardente quando subia
as escadas e nos trazia madalenas
mais plebeia a graça das suas pernas de canela,
mas por desgraça o tempo é um combustível
uma tortura de cruas catapultas
que a todos aturdidamente atinge, e chegará o dia
em que silencioso e apenas recordado o riso
da velha rapariga nos parecerá o brilho do sol



(A mão na água que corre, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011, p. 15).